A proposta dessas entrevistas não é saber o que o entrevistado acredita que será do Brasil daqui a 5 anos, ou sua opinião política, ou qual a tese por trás da maior posição no portfólio da gestora de recursos.
O propósito aqui é entender o ponto de convergência entre o profissional (o que, claro, envolve o produto, a estratégia e as qualidades necessárias para exercer carreira no mercado); o empresário (qual cultura de empresa ele desenvolveu para a asset, o que é necessário para trabalhar ao seu lado, como se mitiga problemas de empresa como captação, risco e turnover); e a pessoa (seus hobbies, interesses e livros favoritos, por exemplo, porque isso também acaba moldando seu lado profissional e empresário, como já falamos neste post). Uma pessoa é o acúmulo de todas as suas vivências, lições, paixões, hobbies, conhecimento. Sua maneira de atuar na vida pessoal e profissional sempre terá uma interseção. É isso que queremos capturar nessas entrevistas.
Felipe Mattar é sócio e gestor da Atmosphere Capital. Somando mais de 25 anos de mercado, Felipe passou boa parte da sua carreira no equity research, passando por instituições como Goldman Sachs, Citi, Deutsche Bank, Merrill Lynch e Barclays. Depois de alguns anos de experiência em grandes bancos, e considerando sua expertise no mercado de equities offshore, em 2017 Felipe fundou a Atmosphere, com o objetivo de desenvolver uma estratégia para gerir o seu capital e o dos demais sócios fundadores. Satisfeitos com os resultados, decidiram no final de 2021 abrir a estratégia para o mercado.
Muitas vezes, os riscos de países emergentes (alô, risco Brasil) tendem a deixar investidores inseguros, especialmente em matéria de equities, reféns a grandes oscilações e ciclos de mercado. Direcionando seus investimentos a mercados desenvolvidos e setores perenes, a Atmosphere Capital desenvolveu sua estratégia focada na geração de retornos positivos ajustados ao risco, com volatilidade controlada.
Fundada em 2017 por sócios que acumulam individualmente mais de 20 anos de experiência no mercado financeiro local e internacional, a gestora de recursos é uma casa independente que lança mão de recursos quantitativos e qualitativos, mesclando expertises de uma abordagem estatística e fundamentalista, para investir em ativos de setores como energia, industrial, materiais, economia circular e infraestrutura, com foco em mercados desenvolvidos ocidentais, a exemplo dos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra...
A casa conta com screenings proprietários que, como filtro inicial, mapeiam boas oportunidades dentro dos setores de seu escopo. Após a seleção inicial dos potenciais ativos-alvo, a equipe de Research realiza análise aprofundada desses ativos, e a gestão roda diversas simulações estatísticas para a construção dos portfólios, buscado isolar, através de estratégias de alocação, fatorização e hedges, a exposição aos riscos que não consideram atrativos ou para os quais não possuem convicção, buscando retornos com risco controlado e a mitigação de eventos de cauda.
“Onde está sua arbitragem? Conhecer com profundidade aqueles temas, instrumentos, ativos e mercados. Para isso você tem que construir um time com muito mais capacidade de processamento do que de coleta de informações.”
Felipe Mattar
CS: Felipe, me conta um pouco da sua trajetória e do que você fez antes de montar sua própria gestora.
FM: Entrei no mercado em 1995, em meio a um boom de corretoras internacionais que visavam explorar o mercado latino-americano. Comecei a carreira como estagiário no Merrill Lynch, em um cenário bem diverso ao cenário atual: um mercado ainda pouco explorado e com poucos profissionais à disposição. Isso me deu a oportunidade de estar muito próximo aos investidores – um deep dive mesmo! Foquei a maior parte da minha carreira em Equity Research e, depois do Merrill Lynch, tive a oportunidade de trabalhar no Deutsche Bank, Citi, Barclays e Goldman Sachs, sempre focado nos setores de energia, infraestrutura, industriais, em mercados onshore e offshore. No Deutsche, inclusive, eu tive o desafio de acompanhar esses setores no leste europeu. No Goldman abracei também outras funções e atividades, como a liderança da equipe de Research com 44 pessoas distribuídas entre São Paulo e Nova York, além de ter virado estrategista de Equities. O primeiro mergulho no que fazemos hoje foi ainda no Goldman, inclusive…
CS: Como assim?
FM: Quando você pensa na história da indústria de fundos nesse período, ela era majoritariamente formada por fundos mútuos que são fundos referenciados em índices, onde os gestores trabalham com maiores ou menores exposições compradas em determinados ativos em relação às suas participações nos respectivos índices, sem muita flexibilidade. Porém, em 2008-09, a indústria de ETFs deslanchou, que são ativos que qualquer investidor pode comprar e vender diariamente e que replicam diversos índices setoriais e temáticos. Naquele momento, o Goldman acreditava que a evolução dessa indústria levaria à grande migração de recursos dos fundos mútuos para os ETFs, mas também para estratégias descorrelacionadas em relação a esses índices setoriais e temáticos, no caso os hedge funds. Posso te falar um pouco sobre hedge funds lá fora, se não estiver sendo redundante?
CS: Claro!
FM: Acreditando nessa migração, o Goldman reestruturou toda a estratégia dos produtos de Research e Brokerage para atender a indústria de hedge funds, um negócio que até então era majoritariamente focado em fundos mútuos. Com isso, o conceito do negócio mudava completamente, porque os hedges funds implementavam estratégias descorrelacionadas, com muita flexibilidade para trabalhar riscos (operar comprado, vendido, usar derivativos, instrumentos de proteção, fatorização, etc). Bom, passados 10 anos essa migração de recursos de fato se concretizou… Os fundos mútuos sofreram muitos resgates, cerca de 70% do total. Desses recursos resgatados, 2/3 foram direcionados para os ETFs e 1/3 para os hedge funds. Neste processo, interagimos profundamente com os hedge funds nos Estados Unidos e gostei muito do que eu vi nas estratégias, principalmente as possibilidades que se tem para controlar riscos e isolar os temas e fatores aos quais se quer ou não estar exposto. Em 2017 eu tive um evento de liquidez e decidi montar uma estratégia que levasse esses benefícios em consideração para gerir meus recursos e os dos meus sócios.
CS: Sensacional.
FM: Quando você pensa no Brasil, o mercado de renda fixa soberana é bem maior do que o mercado de equities. Nos Estados Unidos é o inverso. O mercado de equities (NYSE + Nasdaq) tem quase quatro vezes o tamanho do mercado de dívida soberana americana, sendo portanto muito robusto, com história longa, extremamente líquido e com substancial variedade de instrumentos, ampliando consideravelmente o pode ser feito em termos de temas, estratégias, e proteções. Por conta desse tamanho, especificamente no mercado de hedge funds, 60% de todas as estratégias são de equity long and short, sendo que a maior parte dessas estratégias são com exposição líquida flexível, que é o que nos propomos a fazer. Nessas estratégias, as posições não são necessariamente long bias, short bias, ou market neutral, mas migram, com alguns limites entre essas exposições. Por exemplo, pode-se ficar long bias (comprado) ou short bias (vendido) se se tem um viés positivo ou negativo sobre os fatores e ativos nos quais você quer estar posicionado. Além disso, dado o tamanho do mercado e a quantidade de ativos e temas à disposição, acreditamos que para encontrar boas oportunidades de arbitragem é importante olhar para oportunidades de investimentos nas quais se conhece com profundidade, e por essa razão nos especializamos nos nossos setores.
CS: Ah, então vocês também têm nicho de setores também?
FM: : Sim, somos nichados nos setores de energia, industrial, materiais, economia circular e infraestrutura, porém de amplo espectro – ou seja, apresentam um vasto universo de temas, Clara. Na indústria de hedge funds nos Estados Unidos, para equity long and short existem muito poucas estratégias generalistas; a grande maioria é nichada em setores, como no nosso caso. Nós selecionamos esses setores porque acreditamos que nossa arbitragem está na profundidade do conhecimento da equipe nesses campos, englobando seus ciclos, estruturas, dinâmicas, formação de preços, comportamento de oferta e demanda, entre outros. Interessante acrescentar que, por questões regulatórias e também relacionadas à sua própria robustez, os mercados desenvolvidos costumam apresentar menor restrição ao acesso às informações em comparação aos mercados emergentes. Por essa razão, como existe uma quantidade relevante de informações e dados disponíveis, o grande desafio da gestão está em construir um time com muito mais capacidade de processamento do que de coleta dessas informações. Fazemos isso por meio de uma abordagem fundamentalista e quantitativa.
CS: Screening de fatores?
FM: Isso, um screening de fatores, com a maior quantidade possível de referências estatísticas em relação aos fatores que queremos ter exposição ou dos quais queremos nos proteger… Quando pensamos no portfólio, consideramos que o impacto de um ativo para o retorno ajustado ao risco de um portfólio é muito mais relevante do que a relação risco-retorno desse mesmo ativo, quando considerado individualmente. Suponha que eu tenha um ativo com 30% de retorno esperado e outro com 10%. Numa análise mais simplista o ativo com o maior retorno parecer ser a escolha mais lógica, masa alocação no ativo com menor retorno pode proporcionar uma redução do risco, de modo que a relação risco-retorno do portfólio como um todo seja melhor do que com o ativo mais rentável. Agora, para que você chegue a tais conclusões, precisa-se acumular e debater uma quantidade relevante de informações, do fundamento à fatorização. Existem situações em que o ativo com 30% de retorno esperado poderia dobrar o risco da carteira, simplesmente porque o portfólio já tem muita exposição aos fatores que o influenciam. Buscamos construir um portfólio que leve em consideração os diferentes fatores que influenciam cada ativo e as suas inter-relações com os fatores dos demais ativos. Dessa forma, acaba sendo uma maneira muito distinta de se construir o portfólio quando comparada àqueles mercados que possuem menor quantidade de temas específicos, de ativos, que apresentem restrições de liquidez, de instrumentos, de acesso a informações, como é o caso em muitos mercados emergentes.
CS: E como você disse que o fundo é majoritariamente operando em pares long and short, eles são intrasetoriais ou intersetoriais? Porque você tem de fato uma gama extensa de recursos para lançar mão para montar essas pontas…
FM: Então, não são pares muitas vezes, porque isso poderia trazer um risco idiossincrático indesejado nas duas pontas. As posições long & short intersetoriais e intrasetoriais tendem a variar muito quando consideradas as referências estatísticas naquele momento, sendo difícil, por exemplo, fazer pares intersetoriais em mercados de volatilidade e correlações setoriais muito baixas, e isso acaba variando muito em diferentes momentos. É uma alocação muito dinâmica e que depende muito de como cada setor se comporta ao longo do tempo. Geralmente perseguimos a contraposição de um ativo com seu índice setorial ou com o um fator específico. É por isso que trabalhamos com exposição líquida dinâmica, mas também com beta setorial e fatorial dinâmico, podendo em muitos casos neutralizar completamente a exposição a esses fatores e betas. Essa dinâmica só é possível porque temos vários temas e instrumentos à disposição. Por exemplo, só nos setores vinculados às cadeias de petróleo temos 46 ativos disponíveis entre refinarias, oil services, produtoras de petróleo e empresas integradas. Em média, nossas posições têm variado entre 40 a 45 ativos nos setores que operamos. Dentro do nosso escopo setorial, temos 40 índices setoriais (ETFs) e 50 índices fatoriais para trabalhar nossa estratégia - então por que não usá-los para neutralizar ou potencializar betas? Se eu estiver falando grego você me fala, hein? (risos)
CS: Por enquanto tá tranquilo, mas pode deixar que eu aviso! (risos)
FM: (risos) Então não é exatamente fazer um par. Fazer pares específicos acaba sendo o resultado de limitações mais presentes em mercados que possuem poucos ativos e instrumentos à disposição, mas o portfólio pode ficar muito exposto a riscos indesejados. Nos mercados emergentes, as posições pares, por conta da baixa liquidez e de poucos ativos, trazem pouca consistência estatística, tornando-se um problema por potencialmente aumentar muito os riscos idiossincráticos nas duas pontas, sem necessariamente isolar de maneira adequada aqueles riscos não idiossincráticos aos quais não se quer exposição...
CS: Felipe, já caminhando para o final da entrevista, me fala três livros que mudaram sua visão de mundo ou de profissional de mercado.
FM: Eu acabei lendo muito sobre a indústria como um todo desde que fiz a migração de analista para gestor. Eu gosto mais de livros que falam dos fracassos que dos sucessos. Mas infelizmente se fala mais dos sucessos, das estrelas do mercado… Então nesse sentido tem o Hedge Funds Humbled, um livro fácil, anedótico, do Trevor Ganshaw.. Outro é o When Genius Failed, sobre a LTCM, e outro um pouco mais técnico que é o Quantitative Approach for Fundamental Analysis, que traz o vínculo quantitativo ao que é feito, como o que a gente faz aqui.
Queria agradecer ao Felipe pelo tempo e disponibilidade, por aceitar que eu contasse um pouco sobre a Atmosphere e sobre sua trajetória e, também, agradecer a você pelo seu tempo e por fazer parte desse projeto comigo.
Obrigada por ler!
Execelente, ótima entrevista.
As instituições financeiras que o Felipe passou, serviram de um grande apredizado!