A proposta dessas entrevistas não é saber o que o entrevistado acredita que será do Brasil daqui a 5 anos, ou sua opinião política, ou qual a tese por trás da maior posição no portfólio da gestora de recursos.
O propósito aqui é entender o ponto de convergência entre o profissional (o que, claro, envolve o produto, a estratégia e as qualidades necessárias para exercer carreira no mercado); o empresário (qual cultura de empresa ele desenvolveu para a asset, o que é necessário para trabalhar ao seu lado, como se mitiga problemas de empresa como captação, risco e turnover); e a pessoa (seus hobbies, interesses e livros favoritos, por exemplo, porque isso também acaba moldando seu lado profissional e empresário, como já falamos neste post). Uma pessoa é o acúmulo de todas as suas vivências, lições, paixões, hobbies, conhecimento. Sua maneira de atuar na vida pessoal e profissional sempre terá uma interseção. É isso que queremos capturar nessas entrevistas.
Ivan Barboza é fundador da Ártica e gestor do Ártica Long Term FIA. É bacharel em Engenharia Física pela UFSCar e CFA Charterholder desde 2014, tendo mais de 10 anos de experiência em gestão de recursos e 12 anos de experiência em M&A.
CS: Ivan, me fala um pouco da sua trajetória de mercado e sobre a transição de carreira de investment banking para asset management?
IB: Comecei a trabalhar com investment banking em 2010, em uma boutique de M&A que havia sido recém-criada. Lá existia um sócio não operacional e, após poucos anos, chegamos à conclusão de que esse tipo de negócio não comporta bem os sócios que não estejam no dia a dia. Então, eu e alguns colegas saímos e montamos o Ártica no início de 2014, onde continuei trabalhando em investment banking até 2022.
A história da nossa área de Asset Management aconteceu em paralelo. Em 2013, criamos um clube de investimentos, chamado Arcádia (o nome Ártica ainda não existia), para unir esforços e fazer uma gestão organizada do nosso próprio capital. O clube começou bem pequeno e foi crescendo ao longo do tempo, até o ponto em que decidimos criar uma gestora profissional e transformamos o clube em FIA em 2019. Alguns anos depois eu fiz a transição de carreira. Deixei o time de investment banking do Ártica para me dedicar totalmente à Asset Management.
Para mim, a transição foi algo natural. Gestão sempre me atraiu mais do que investment banking, então eu já tinha planos de migrar há vários anos. Era só questão de esperar o momento adequado para fazer esse movimento.
As duas carreiras são excelentes, mas acredito ter mais vocação para passar meus dias estudando negócios e oportunidades de investimento do que para as atividades comerciais que a carreira de investment banking exige.
CS: Vi que o FIA surgiu, inicialmente, de um clube de investimentos. Quais você acha que são os principais desafios de cada veículo?
IB: Clubes são veículos de investimentos simplificados, limitados a 50 cotistas e com menos exigências regulatórias. Usamos esta estrutura enquanto tínhamos praticamente só capital próprio e de pessoas próximas investido, pois era mais fácil e barato de manter. No entanto, as exigências menores implicam em menos transparência e garantias de compliance para investidores externos.
Assim, quando decidimos oferecer o serviço de gestão profissional ao mercado, convertemos o clube em FIA. É um tipo de veículo mais burocrático, mas as regras regulatórias não chegam a ser um peso relevante nas operações e são bastante justificadas. É importante que existam para manter a indústria de investimentos saudável.
CS: Recentemente a Ártica publicou um estudo bem legal junto ao Insper sobre a gestão de patrimônio aqui no Brasil, que evidencia bem um dilema: quando o fundo é muito pequeno, existe um problema de diversificação do passivo, que afeta uma série de outras questões como liquidez e sizing. Em contrapartida, um fundo muito grande tem um problema de capacity e consequentemente geração de alfa, a partir de determinado nível de patrimônio, acima de R$1bi. Qual possível solução caso o fundo atinja essa meta?
IB: Investindo com a mesma estratégia e no mesmo mercado, não há como evitar que o retorno médio vá caindo à medida que aumenta o capital sob gestão, pois o número de oportunidades de investimento que têm liquidez e porte suficiente para fazer grande diferença no portfólio vai se tornando cada vez menor.
Estimamos que, com mais de R$ 1 bi sob gestão, começaríamos a ter dificuldades para investir com nossa estratégia atual na bolsa brasileira, mas esse capacity se amplia bastante se incluirmos outras geografias no nosso universo de possibilidades. Inclusive, já investimos fora do Brasil hoje. Neste ano, compramos ações de duas empresas inglesas. Não por causa de capacity, mas porque achamos esses excelentes negócios com suas ações sendo negociadas a preços bastante atrativos na bolsa de Londres.
CS: O FIA de vocês tem uma essência muito fundamentalista e de longo prazo. Pode falar um pouco sobre o processo de investimentos e o giro da carteira de vocês?
IB: Procuramos oportunidades de investimentos em empresas com três principais características: atuação em segmentos de negócios rentáveis, vantagens competitivas sustentáveis e ações precificadas consideravelmente abaixo do que julgamos ser seu valor justo.
A estratégia em si é bastante óbvia, mas não é comum achar boas empresas subvalorizadas. Às vezes, o preço está baixo somente por falta de liquidez e cobertura de investidores profissionais, mas, normalmente, existe algum problema que justifica por que não há tantos compradores interessados. Pode ser algum ponto negativo na própria empresa ou um ciclo macroeconômico ruim causando quedas generalizadas de preços. Em boa parte das nossas teses, o diagnóstico que a empresa está barata parte de uma visão de que os problemas existentes têm chances razoáveis de serem superados ao longo do tempo.
Porém, mesmo que identifiquemos que algo tem altas chances de acontecer, não há meios de saber quando acontecerá. Por isso é que nosso horizonte de investimento é longo: a impossibilidade de prever a cronologia dos fatos torna necessário estar preparado para esperar alguns anos.
Quando o preço de uma ação investida sobe muito, a relação de retorno potencial e risco da tese de investimento piora, então aumenta a probabilidade de haver alguma outra tese melhor para ter em portfólio no momento. Essa é a lógica que causa o giro na carteira: estamos continuamente analisando oportunidades de investimento e montando o portfólio com as melhores que conseguimos achar. Porém, giramos bem pouco. Não acredito em ficar fazendo pequenos rebalanceamentos de portfólio à medida que variações de preço pouco expressivas acontecem. As estimativas envolvidas em análises de investimentos estão longe de serem precisas, então só rebalanceamos quando uma oportunidade é claramente melhor do que outra.
CS: O que você acha que é o DNA da Ártica? Qual o ponto comum entre as pessoas que trabalham com vocês? Quais competências você busca nos funcionários?
IB: Nossa cultura é bastante estoica. Parece fora de moda hoje em dia, mas o que valorizamos são as virtudes clássicas. Acredito que um bom gestor precisa dedicar sua vida aos estudos, ao esforço de compreender cada vez melhor o mundo para ser capaz de tomar decisões com sabedoria. Precisa se manter sempre racional e ponderado, buscar a excelência em tudo aquilo que está sob seu controle e ser resiliente em face às adversidades inevitáveis que se apresentarão em certos momentos. Precisa estar disposto a agir de acordo com suas próprias convicções, independente do que seja a visão predominante do mercado no momento, e suportar as críticas que sempre virão enquanto estiver agindo contra o consenso da época. Também é necessário manter total integridade e honrar a confiança que cada investidor teve ao entregar parte do capital que acumulou ao longo da vida para ser investido sob nossa discricionariedade, entendendo todo o peso dessa responsabilidade.
Apesar da descrição mais livre e aplicada ao nosso contexto profissional, os conceitos acima são bastante aderentes às virtudes estoicas. Nosso mantra é a eterna busca pela rotina perfeita, que nos torne cada vez mais competentes e eficientes.
O que procuro para o nosso time são pessoas com rigor de caráter, talento acima da média, sede insaciável por autodesenvolvimento e o desejo de viver de acordo com esses princípios.
CS: Tem alguma crise ou algum momento que pra você foi memorável desde que começou no mercado? Joesley Day, os circuit breakers durante março de 2020… Como vocês contornaram?
IB: A crise mais memorável para mim foi a de 2015, que culminou com o impeachment da Dilma em 2016. Nem tanto pelas particularidades dessa crise em si, mas porque foi a primeira que atravessei investindo profissionalmente, com capital de outras pessoas sob gestão. Em 2015, nosso portfólio caiu 19,7%. Revisamos várias vezes nossos valuations e o que tínhamos em carteira continuava nos parecendo muito barato. A queda parecia muito mais relacionada ao contexto macroeconômico do que a algum fato sobre as empresas investidas. Então, tomamos a decisão de segurar nossas ações ao longo de toda a crise. Acabou sendo um teste de fé em nossa filosofia de investimento, pois, na época, não tínhamos experiência suficiente para ter aquela autoconfiança de quem já viu pessoalmente o método funcionando diversas vezes. Hoje tenho uma postura mais contemplativa em relação a crises. São sempre mais desconfortáveis que os períodos de alta, mas fazem parte da natureza econômica e vão continuar acontecendo de tempos em tempos. Além disso, crises são as fontes das melhores oportunidades para comprar empresas excepcionais a preços baixos.
CS: Qual é o lado mais desafiador de ser gestor de portfólio e o lado mais desafiador de ser fundador e sócio de uma empresa no mercado financeiro brasileiro?
IB: A principal dificuldade no trabalho de gestão é analisar o mercado de forma verdadeiramente independente, sem se deixar influenciar pelo que todos estão falando e pelas manchetes de jornal, e estar pronto para agir contra o consenso de mercado quando isso for um ato racional. É particularmente difícil porque teses de investimento podem demorar anos para se desenrolarem. É possível que você passe bastante tempo indo contra a corrente e é necessário um alto nível de convicção para isso. A maioria das pessoas não é bem adaptada para lidar com grandes incertezas e resistir à opinião dos que estão ao seu redor.
O lado mais desafiador de fundar um negócio no mercado financeiro é que esse setor é muito fechado e dependente de relacionamentos. Não é uma crítica. Faz sentido que essa seja a cultura porque o dano de um trabalho irresponsável é grande, então as pessoas demoram bastante até criar os laços de confiança necessários para fazer negócios envolvendo capital expressivo com alguém novo. É preciso ter paciência e persistência. Uma boa reputação é construída por anos e anos trabalhando com excelência.
CS: Por fim, me fala três livros que mudaram sua perspectiva como gestor ou como pessoa.
IB: Os livros que moldaram minha filosofia de investimentos foram os clássicos de value investing. Entre eles: The Intelligent Investor (Benjamin Graham), Security Analysis (Benjamin Graham e David Dodd), Margin of Safety (Seth Klarman), The Most Important Thing (Howard marks), Common Stocks and Uncommon Profits (Philip Fisher), Capital Returns (Edward Chancellor), The Essays of Warren Buffet (Lawrence Cunningham), Poor Charlie’s Almanack (Charlie Munger). Mas não vou contá-los na cota dos 3 livros porque são indicações bastante comuns no nosso meio. Vou tentar trazer algumas novidades.
Psychology of Intelligence Analysis – Richards Heuer
O autor é um veterano da área de inteligência da CIA, o tipo de profissional que analisa o risco de a Rússia iniciar um ataque nuclear e escreve relatórios sobre isso para que políticos americanos decidam o que fazer. O livro fala sobre vários tipos de erros sistêmicos que costumam ser cometidos em análises complexas em ambientes incertos e sugere métodos de aperfeiçoamento. É um tema bastante aplicável ao mundo de investimentos e com um tom diferente do que costumamos ler em livros focados em mercado financeiro.
How the World Really Works: A Scientist's Guide to Our Past, Present and Future – Vaclav Smil
O autor é um acadêmico que escreveu dezenas de livros e condensou os principais pontos de seu trabalho neste aqui, que traz uma visão bastante pragmática e ampla sobre quais são os pilares que sustentam a civilização moderna. Os principais temas são: produção de alimentos, energia e materiais industriais básicos.
É interessante pela abordagem metódica e baseada em primeiros princípios com a qual cada tema é analisado, especialmente em alguns que costumamos ver bastante influenciados por vieses políticos, como, por exemplo, o plano de abandonar combustíveis fósseis e migrar para energia limpa.
Trilogia escrita por Lee Kuan Yew
Como os 3 livros são partes de uma mesma história, vou contá-los como uma indicação só.
The Singapore Story: Memoirs of Lee Kuan Yew
From Third World to First: The Singapore Story: 1965-2000
One Man’s View of the World
Me interessei por esses livros depois de ouvir repetidas vezes o Charlie Munger dizendo o quanto admirava o Lee Kuan Yew. Esse é o peso da indicação.
Lee Kuan Yew foi o Primeiro-Ministro de Singapura entre 1959 e 1990 e manteve grande influência política no país até sua morte, em 2015. Ele liderou a transformação de Singapura de uma colônia inglesa subdesenvolvida, sem recursos naturais e com sérios conflitos internos no país de primeiro mundo que é hoje.
O livro é interessante não só pelo Lee Kuan Yew ter sido um estadista brilhante, mas por trazer ideias muito diferentes do que julgamos como o normal no ocidente. Provoca uma série de reflexões interessantes.
Há um quarto livro escrito por jornalistas com base em entrevistas feitas com o Lee Kuan Yew em seus últimos anos de vida. Para quem gostar dos 3 primeiros e quiser um extra, o livro se chama: Hard Truths to Keep Singapore Going.
Queria agradecer muitíssimo ao Ivan pela disponibilidade e, também, agradecer a você por abdicar uma fração do seu ativo mais precioso (seu tempo) e por fazer parte desse projeto comigo.
Obrigada por ler!
Clara Sodré
Parabéns Clara, ótima entrevista. Eu sou fã da Ártica, os caras são bons demais! Único problema (para minha filosofia de investimento) é o D+90 no fundo, não consigo operar assim tão longe…