A proposta dessas entrevistas não é saber o que o entrevistado acredita que será do Brasil daqui a 5 anos, ou sua opinião política, ou qual a tese por trás da maior posição no portfólio da gestora de recursos.
O propósito aqui é entender o ponto de convergência entre o profissional (o que, claro, envolve o produto, a estratégia e as qualidades necessárias para exercer carreira no mercado); o empresário (qual cultura de empresa ele desenvolveu para a asset, o que é necessário para trabalhar ao seu lado, como se mitiga problemas de empresa como captação, risco e turnover); e a pessoa (seus hobbies, interesses e livros favoritos, por exemplo, porque isso também acaba moldando seu lado profissional e empresário, como já falamos neste post). Uma pessoa é o acúmulo de todas as suas vivências, lições, paixões, hobbies, conhecimento. Sua maneira de atuar na vida pessoal e profissional sempre terá uma interseção. É isso que queremos capturar nessas entrevistas.
Fernando Fontoura é sócio-fundador e gestor na Persevera Asset. Formado em Administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas e CFA charterholder, o background de Fontoura vem majoritariamente de bancos estrangeiros, como Morgan Stanley e HSBC, onde conheceu seus sócios. Começou na gestão também no HSBC com foco em small caps até 2017, quando fundou a Persevera com outros três sócios egressos do banco.
“Muito frequentemente no mercado eu via isso, bons técnicos que eram péssimos gestores de equipe. É uma pena porque não adianta, porque para você evoluir profissionalmente, ou você faz mais com seu próprio tempo, ou você aprende a usar o tempo dos outros. Você precisa unir as pessoas em torno de uma visão.”
Um grande admirador e estudioso da escola austríaca de pensamento econômico, não teria outro destino para Fernando senão trabalhar na entidade cuja força motriz é a auto regulação de preços - também conhecido nos best sellers de finanças como Senhor Mercado. Em sua autodescrição, Fernando transparece como o valor da perseverança (e da resiliência) sempre lhe foi intrínseco: “fui forjado no bullying a ir contra o consenso com naturalidade”. Ir contra o consenso sem se deixar abalar por vieses também denota um quê de contrarian na sua personalidade.
A história da gestora fundada por Fontoura começa em 2010, quando Guilherme Abbud, um dos sócios e na época CIO do HSBC, recebeu o mandato de reinventar a área de hedge funds no banco. Na época, com Fernando, Nicolas Saad e Cesar Dammous, demais sócios-fundadores, montaram um multimercado que buscava encontrar correlações entre classes de ativos diferentes. Em 2017 abriram a gestora, cujo fundo ‘carro-chefe’, o multimercado Persevera Compass, começou a operar em 2018.
O nome Persevera é uma referência ao valor da perseverança - não no sentido de perseverar nas posições de mercado, o que muitas vezes pode tão somente ser teimosia, mas sim no sentido de resiliência. Ser um gestor de recursos num país emergente, e especialmente com um ambiente político, fiscal e jurídico hostil como o Brasil, só reforça a importância da perseverança, seja como profissional de mercado, seja como empreendedor.
CS: Quais você acha que são as características primordiais para ser um bom gestor?
FF: Acho que primeiramente um gestor competente não pode ser dogmático. Tem que estar muito livre de preconceitos para conseguir desempenhar bem essa função. Mercado é uma lição de humildade constante. Você sempre está sendo lembrado do quanto você não sabe de nada. É preciso ser muito cético com tudo, também. Ter a capacidade de trabalhar com a ambiguidade. Ter na sua mente que você está trabalhando com uma premissa que sempre pode ser falha, o que não invalida o pensamento, mas é preciso manter isso em mente, porque evita que você se apaixone muito pelas conclusões, pelas teses…
CS: Ser gestor de recursos era um objetivo seu? Você sempre quis isso?
FF: Não… Para mim ser gestor nunca foi um sonho, foi um processo meio orgânico. Na verdade, na minha cabeça eu viraria um trader de sell side, tesouraria talvez. A migração da mesa para a gestão e para a análise aconteceu meio organicamente, não foi planejado…
CS: E o que você acha que mudou de ser um gestor dentro de um grande banco para ser um gestor que também é sócio de uma asset?
FF: Ah, mudou muita coisa. Ser empreendedor além de gestor é um enorme desafio. A maioria dos gestores não quer ser gestor de empresa, quer ser gestor de carteira. Ser empreendedor traz uma gama de trabalhos que varia desde definição estratégica, lançamento de produtos, contratações, até comprar detergente no mercado.A gente passa a se preocupar com uma série de outras responsabilidades. Hoje em dia eu sou meio gestor e meio empresário (risos) então tem a preocupação com financeiro, RH…
CS: E quando entram as pessoas aqui dentro você precisa fazer não só a gestão do business e da carteira do fundo mas também do pessoal, né? O que você acha que é mais desafiador ao fazer gestão de pessoas?
FF: Geralmente um gestor mais técnico acaba desprezando a importância que tem fazer uma gestão de equipe e achar as pessoas corretas, que tenham fitting com a empresa. Muito frequentemente no mercado eu via isso, bons técnicos que eram péssimos gestores de equipe. É uma pena porque não adianta, porque para você evoluir profissionalmente, ou você faz mais com seu próprio tempo, ou você aprende a usar o tempo dos outros. Você precisa unir as pessoas em torno de uma visão. Da minha parte, acho que meu estilo de liderança de pessoas é muito baseado em valores. O que eu busco é deixar muito clara a minha visão e onde eu quero chegar.
CS: E o que pode ser feito em termos de cultura de empresa para evitar turnover desse pessoal?
FF: Aqui na Persevera a gente tem uma cultura muito forte de compartilhar resultados. Eu não quero ganhar dinheiro se meu analista não tiver ganhado dinheiro antes. Todos são muito ouvidos porque a gente tem um mindset muito claro de partnership. Por esse motivo a gente também retém as pessoas via equity, todos são sócios. Isso acaba se transformando em um fator de retenção bem relevante e gera um ambiente horizontal porque todo mundo se escuta. Se meu input é sempre levado em consideração, eu fico na equipe.
CS: Você tem algum hobby ou algo que você goste de estudar que acredita que complementa ou que faz parte da sua visão de mundo enquanto um profissional do mercado?
FF: Eu sou um estudioso da escola austríaca de economia, acho que daria destaque para isso… Quando entrei em contato pela primeira vez, me ajudou a compreender várias coisas que para mim não faziam muito sentido. Uma coisa que ninguém me convenceu: a gente aprende na faculdade que inflação tem que ser positiva todos os anos, um valor baixo, mas positiva. Por que? A escola austríaca tem uma leitura sobre isso. O problema dela é ser meio dogmática em alguns assuntos. Por isso eu acabei indo para um caminho de investigação para entender um pouco o mundo como um todo, o que leva a escola austríaca com certeza, mas também outras escolas e outras linhas de pensamento na economia. Acho que pegar um pouco de cada corrente é o que acabou formando minha visão de mundo. E mesmo passear por diversas áreas do conhecimento, não focar muito numa área só.
CS: Buscar ser mais um generalista que um especialista, né? Juntar um pouquinho de várias áreas e entender como elas ajudam a formar a gente como profissional…
FF: Isso, acho que é por aí. Você conhece aquela alegoria dos cegos e o elefante?
CS: Não conheço…
FF: Então, existe essa parábola de uma vila em que tinham alguns sábios cegos que eram como os conselheiros das pessoas que habitavam ali… Um dia chegou um comerciante com um elefante e os cegos começaram a tatear para descobrir que animal era aquele. Um pegava na cauda e dizia, “esse animal parece uma corda”, o outro pegava no pé e dizia que era grande como um tronco de uma árvore, outro pegava na tromba e dizia que parecia com uma cobra, por aí vai… E todos estão certos de alguma forma, né? Mas são perspectivas diferentes. Aquela não é a verdade. A verdade é mais complexa do que olhar uma só parte em vez do todo.
CS: Você acha que essa analogia serve para ter funcionários, pessoas com backgrounds diferentes também?
FF: Com certeza… Eu acho que o mais importante é associar todas as coisas, de diversas perspectivas diferentes, e acabar concatenando numa visão sobre determinada coisa, que vai acabar sendo mais completa. A capacidade de integrar vários campos do conhecimento faz total diferença. Eu acho que um ímpeto que a gente tem como ser humano quando a gente ouve uma opinião contrária é partir direto pro julgamento. Eu tento ao máximo me distanciar disso. Mesmo porque toda ideia, por mais absurda que pareça ser, tem algo de razão. Então eu prefiro muito mais tentar identificar de que forma, sob qual perspectiva uma visão diferente está certa em vez de julgar como certa ou errada.
CS: E falando um pouco sobre sua trajetória… Tem algum conselho que você daria para você mesmo no começo da sua carreira no mercado?
FF: Esquece tudo que você aprendeu na escola. Tudo que você aprendeu de economia, de política etc. Esquece. Não é por aí. Começa de novo, do zero. Começa investigando e questionando e vai reconstruindo conhecimento aos poucos.
CS: E algum momento que você passou por um susto que virou uma grande lição?
FF: Teve… É interessante como suas primeiras memórias profissionais marcam muito sua formação. Eu fui forjado em 2008, foi meu primeiro ano como trader diretamente na mesa do HSBC. A gente se questionava se o mercado financeiro ia continuar de verdade, se ia quebrar tudo, a gente não sabia. O segundo semestre de 2008 foi muito estressante. Um momento que me marcou bastante foram os dias que antecederam a fusão do Itaú e do Unibanco. A gente tinha uma posição gigante em Unibanco e tinha convicção que o banco ia quebrar. Isso reforçou muito meu mindset de ceticismo, cautela, e muita parcimônia nos investimentos. Um gestor forjado no bull market é muito mais suscetível ao FOMO por exemplo. Por conta disso, eu posso até não crescer tanto no bull market, mas quero ao máximo me proteger na queda por ter vivido uma crise como essa. Preservar capital para nossa estratégia de gestão é muito mais importante que dar uma porrada tomando um risco maluco.
CS: Você falou sobre ser forjado no bull market, o bull sempre torna difícil a gente diferenciar quais gestores são competentes e quais tiveram sorte porque se beneficiaram de um momento positivo para ativos de risco. Como você acha que se faz essa distinção?
FF: Tempo e consistência. O nosso meio é um meio que precisa de performance, e o que caracteriza os campos de competição de alta performance é o detalhe, o que se faz marginalmente, e também a consistência.
CS: Tem algo que você pense que não é óbvio sobre ser um profissional no mercado?
FF: Eu acho que saber que técnica não é tudo. A parte técnica é importante, mas não é o fundamental. Acho que muita gente deve pensar que a parte técnica é o fundamental, mas isso de fazer o ‘DCF mais preciso, o modelo ideal’... E se não existir valor justo para uma empresa? Acabou. Tudo que você fez de construção técnica está errado, porque sua premissa foi errada. Esse soft skill de trabalhar com a ambiguidade e com a possibilidade de estar errado é muito mais importante que a parte técnica, na minha opinião.
CS: Ainda sobre sua trajetória pessoal, você passou pela mesa, pela análise de equities, pela gestão de fundo dentro de um banco, agora na gestão num negócio próprio… Tem alguma lição que você acha que teve passando por esses lugares que você carrega na sua vida profissional?
FF: Acho que a experiência de gestor num fundo de small caps no banco me ajudou a entender a importância da liquidez, não só do papel mas do sistema financeiro, para a determinação de preço dos ativos. O sistema financeiro é feito de tal jeito que a liquidez é altamente elástica. A intuição das pessoas ao enxergar o sistema leva a pensar que ele não é elástico, mas ele é. Não é uma questão de alocação de recursos, é muito mais de expansão e contração de liquidez. Isso muda a visão que você tem do mercado.
CS: Você acha que hoje atingiu seu maior sonho profissional, Fernando? Já se considera plenamente realizado?
FF: Ah, acho que ainda há muita oportunidade. Talvez eu esteja mais próximo de estar realizado profissionalmente quando eu puder ter a voz para disseminar uma maneira que considero correta de pensar e impacte alguém com isso. Hoje eu estou muito longe disso. Quero ganhar relevância, gostaria que minha voz ganhasse peso. Além disso, acho que satisfação plena a gente nunca atinge. Plenitude é algo tão abstrato, né? O que é plenamente realizado? Acho que eu estaria eternamente insatisfeito, sempre pensando em próximos passos…
CS: Por fim, Fernando, me fala 3 livros que mudaram sua percepção de mercado, estratégia de investimento ou visão de mundo:
FF: “The Rise of Carry”, de Jamie Lee e Tim Lee; “The Misbehaviour of Markets”, de Benoit Mandelbrot; e “The Fiat Standard”, de Saifedean Ammous.
Queria agradecer imensamente ao Fernando pela disponibilidade e pela conversa, e também agradecer a você por ter abdicado de uma fração do seu tempo para me apoiar nesse projeto.
Obrigada por ler!
É um privilégio inenarrável trabalhar com esse cara!
Simplesmente genial, cada parte da entrevista é possível aprender e construir uma visão diferente sobre gestão e mercado. Agradeço de ter conhecido pessoalmente Fernando. Sempre com diálogo enriquecedor, saímos melhores e com horizonte expandido.